GUERRA, SILÊNCIO E HIPOCRISIA.
Não parecia ser verdade. Parecia um sonho, ou melhor, parecia mais um pesadelo! E o tempo fechou. Na verdade, o tempo sempre fecha nos campos de batalha. Antes, porém, por segundos apenas, se fez sepulcral silêncio. Fração de segundos que parecia uma eternidade. Silêncio ensurdecedor e paralisante como aquele que ocorre após o rugido da onça ou do leão na noite escura da densa selva. Tudo silencia. Silencio prolongado e provocante. Coração bate forte. Ansiedade máxima. Adrenalina solta. Olhos bem abertos, punhos cerrados e compaixão anestesiada. É cenário de guerra.
Subitamente, um grito forte ecoa com toda impetuosidade. É grito de guerra e de morte que nasce no interior de três pulmões.
Primeiro, o pulmão do ódio. Vocifera, no pulmão do ódio, a ordem de comando de matar quem aí, do outro lado, se encontre disposto a morrer para matar. É grito de fúria. De ordem. De ordem de morte e de desordem moral. De desabafo. De perplexidade e indignação. Por que matar? Porque o outro é um inimigo a ser abatido. Deve morrer. É vagabundo!
Mas, o outro é apenas um jovem ucraniano, 18 anos, branquinho e imberbe, cheio de vida, de vitalidade e de planos para o futuro, apaixonado por sua namorada. A ordem do ódio é que ele deve morrer.
Não! Ele não deve morrer nessa guerra estúpida e decidida por estúpidos mandatários que se encontram longe dos campos de conflito, no conforto e segurança de suas fortalezas…
Não! Não é um jovem bonito, branco, novo e ucraniano. É um jovem morador de um, entre os tantos, becos e vielas da favela situada no alto do morro. Sim, é muito jovem, tem apenas 18 anos, ainda imberbe, também bonito e apaixonado por sua namorada, mas é pobre, negro e mora na periferia. Esse deve morrer. É bandido! É vagabundo!
À ordem do comando de morte, a TV enaltece o matador. Pode ser polícia, milícia ou outro tipo de organização armada. Os mesmos canais que condenam a invasão bélica russa que já provocou milhares de mortes na Ucrânia, são os mesmos canais de comunicação que enaltecem a ação de morte de jovens negros dos morros, das favelas e das periferias urbanas. Na guerra de lá, não pode! A guerra e a morte de jovens são crimes hediondos. Na guerra de cá, pode! Jovens pobres e negros devem morrer. São vagabundos! Quanta injustiça e quanta hipocrisia.
Reservo um pequeno parágrafo para fazer o registro do segundo ano, em maio de 2022, que São Gonçalo, que o Rio de Janeiro e que o Brasil passam sem a luz do menino João Pedro, abatido numa operação de (in) segurança pública. Pais e amigos próximos choram sua morte. Solidários com seus familiares, queremos refletir e repetir: jovens brancos da Ucrânia, ou jovens negros das periferias de nossas cidades precisam viver e tem o direito de viver. Não se pode concordar com invasões, truculências, abusos de poder e a morte de quem quer que seja. Tanto na bestial guerra da Ucrânia quanto nos selvagens e repugnantes conflitos nas comunidades periféricas e favelas das grandes metrópoles. Cessem as guerras. Basta de hipocrisia.
O segundo pulmão propulsor do grito de guerra e de morte é o pulmão do desespero. É o estertor de quem se sente caçado, cercado, invadido, agredido e prestes a morrer. Bate o desespero. Em fração de segundos, sobe aos céus uma súplica por sua alma penitente e sempre sacrificada, enquanto seu corpo jovem e sadio cai abatido por rajadas de armas invasoras potentes e letais.
Lá estão dois corpos, ensanguentados, caídos, inertes e estendidos no chão. Um, é o corpo do jovem branco, bonito e ucraniano; o outro, é o corpo do jovem negro, também bonito e sadio, das favelas, dos morros e das periferias das grandes cidades brasileiras.
Lá, a guerra é bestialidade, é ato cruel, é ato desumano, é crime absurdo. Cá, a guerra é considerada necessária, aplaudida, ovacionada. Lá, a morte de jovens é sentida e chorada. Provoca até manifestações contra a invasão bélica assassina. Cá, a morte de jovens, especialmente dos jovens pobres e negros, é ovacionada, comemorada e aplaudida. Meu Deus! Quanta hipocrisia!
O terceiro pulmão desse brado feroz está na alma do comando da ordem de matar e, também, na alma da sociedade que aprova e aplaude tais ordens.
Lá, na Ucrânia, a voz do comando de morte tem história. De Ivan (o Terrível) a Putin (o insensível e desprezível), o admirável povo russo sempre conviveu com déspotas, governos autocratas e megalomaníacos, com sede insaciável de poder e incapazes do menor sentimento de compaixão.
Aqui, na guerra de cá, na guerra de morros e favelas, nos extermínios de jovens empobrecidos das periferias, a voz do comando de morte provém de múltiplos organismos com pesados investimentos de setores públicos e privados. Na morte do jovem negro da periferia urbana não há crime, é só mais (ou menos) um. É limpeza de área. É controle de praga. É higienização social e racial. Meu Deus! Quantos argumentos injustos, ideológicos e hipócritas.
A mocinha de classe média, ou o rapaz que mora em condomínio de luxo, ambos comemoram a morte do jovem negro, pobre e da periferia. Ambos aplaudem matadores e algozes dos pobres. E, no domingo seguinte estão aos pés do altar, comungando do Sangue de Jesus que deu sua vida e aceitou sua cruz no meio de dois pobres ladrões condenados à morte (Lucas 23, 39 – 43).
A guerra, lá e cá, é bestialidade, é crime. Crime hediondo! Jovens de qualquer idade, de qualquer cor, de qualquer nacionalidade, de qualquer religião, de qualquer condição social e econômica, sentem dores, tem sentimentos, tem sonhos, desejos, esperança. Não importa ser ucraniano ou brasileiro morador de periferia urbana, não importa sua condição social, não importa sua religião: todos têm direito à vida, ao respeito, à integridade física, à inviolabilidade de sua privacidade, e ao atendimento de seus direitos constitucionais traduzidos em políticas públicas de estado.
É preciso dizer NÃO à guerra! É preciso dizer NÃO à hipocrisia de se condenar a invasão russa na Ucrânia (repito: absolutamente condenável) e, ao mesmo tempo, invadir a privacidade alheia, especialmente nas mídias sociais.
É preciso dizer NÃO à hipocrisia de condenar a guerra de narrativas mentirosas nessa (e em todas) guerra e, ao mesmo tempo, criar, disseminar e compartilhar FAKE NEWS que favorecem determinados grupos economicamente privilegiados.
Neste cenário de guerra, a paz volta depois do grito desesperado de quem foi escolhido para morrer, enquanto se escuta o fúnebre som da rajada de fuzil que dissemina a morte. Sim, há silêncio. Sim, há paz. Não aquela paz desejada, mas a paz dos mortos ou de quem tem medo da morte iminente e insurgente a qualquer momento. Sim, há paz. Aparente. Mas, a vida não é mais a mesma: faltam-nos milhares de João Pedros.
Lá e cá… Desejamos vida e paz. A verdadeira vida. A verdadeira paz. A verdade. Não à guerra e não à hipocrisia.
José Archângelo Depizzol
31/03/2022
Deixe um comentário