Em Tempo de Vacas Magras Toca-se a Vida… Enquanto Passa a Boiada Gorda.
Pouco passava das quatro horas da tarde quando o abrasador sol de setembro já começava seu ritual diário de recolhimento gerando um espetáculo de rara beleza num pôr-do-sol mágico, e desenhando numa aquarela de formas, cores e tonalidades, tantas figuras mágicas ao olhar do menino sonhador, pobre e inocente.
A mescla do brilho do sol contrapondo-se com cores e tons dourados das nuvens, tendo como cenário de fundo o intenso azul do céu emolduravam um notório contraste entre a beleza da criação e a dor da criatura; entre a perfeição da obra divina e as limitações do agir humano; entre o Estado de Graça que nos oferece o Criador e a situação de dor e sofrimento que estado e sociedade civis servem a seus filhos que vivem na dramática situação de pobreza, miséria e fome. Mesmo assim, o menino tenta brincar entre os becos da favela. Não são barracos: são castelos na imaginação pueril.
A generosidade do espetáculo visual era complementada pela agradável aragem vespertina da qual a sombra da tarde era portadora, amenizando, assim, o intenso calor dos ensolarados dias de primavera na infância de um menino negro, pobre e com fome. Infância indelevelmente marcada pela pobreza, por sofrimentos, pela fragilidade, pela inocência e – como a flor de lótus – por um indescritível estado de beleza e felicidade. O menino tem fome. Ronca o estômago. Franze a testa. E abre generoso sorriso. Sorriso indica esperança. Esperança de dormir sem fome.
Já é noite. Construído com sobras de madeira e barro, o casebre era iluminado unicamente pela presença de Deus. Faltou dinheiro para pagar a conta de luz. Algumas velas acesas iluminavam a casa. E aguçava a fé. Água encanada também não existia.
Um pequeno templo, local sagrado na favela sangrenta, era não só o ponto de encontro da comunidade, mas se consumava na eucaristia cósmica do entrelaçamento de vidas humanas em condições desumanas, todas agradecidas e assíduas na duradoura vigília da oração e da união dos humanos entre si, com o universo e com Deus. Nessa eucaristia não se faz necessário o sacrifício do cordeiro. Muitos filhos de Deus já foram sacrificados nessas paragens. O cálice está vazio, mas essa terra está encharcada de sangue inocente. Calados. Inocentes. Como Jesus na cruz.
É tarde da noite. A mãe chora. Faltava alimento para seu filho. Filho pequeno com fome chora. A dor do filho é dor de fome que, uma vez saciada, sente-se acalentado e dorme feliz no colo de mãe. A dor de mãe é a dor da fome do filho, dor que não passa com a parca e enganosa saciedade da criança.
A criança chora. Bem ou mal é saciada. Enganou a fome. Ou melhor, enganou-se da fome. E dorme! A mãe chora! Procura alimentar a criança e a si mesma. E tenta dormir. Não dorme, pois se privou de sua parca alimentação para nutrir o menino – ela vai dormir com fome -, e sabe que ele vai acordar chorando e pedindo comida […] que não tem […].
E em tempos de vacas magras, vai-se tocando a vida enquanto passa a boiada gorda. A mãe chora inconsolável. O menino dorme. A mãe entra em prantos. O menino não chora. A mãe clama! O menino dorme. Não! O menino não dorme. O menino está morto! E a mãe chora. Inconsolável. O menino está morto. Sim! O menino foi assassinado. Como tantos nesses últimos tempos: assassinado! E se fez silêncio no barraco insalubre da miséria e da fome! Silêncio ensurdecedor.
O menino foi morto! Seu assassino não tem rosto, mas tem nome e tem identidade. A perícia conclui que o projétil que ceifou a vida do menino [e de outros milhares] partiu da ponta de uma caneta. Nas decisões que geram ou aumentam a fome. O menino foi morto por complicações em consequência da fome. “Morte de fome não é morte natural, é assassinato”. É crime planejado. Premeditado.
A fome faz sofrer. A fome mata. Exagero? Não!
“O relatório da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) mostra que o número de vítimas cresce, mas que a agricultura mundial poderia alimentar normalmente, com uma dieta de 2,2 mil calorias por dia, 12 bilhões de pessoas. Então, uma criança que morre de fome hoje é assassinada. Fome não é mais morte natural. É massacre criminoso, organizado” (Luciano Alencar Barros, citando o sociólogo suíço Jean Ziegler).
Quem segura a caneta e assina ordens que matam milhares de pessoas de fome? São muitos. Vamos listar apenas alguns.
a) A caneta que ordena a guerra (em especial, hoje, a guerra na Ucrânia): Além de jovens vidas ceifadas em combate aberto, a guerra gera escassez de alimentos, dificuldades de abastecimento, alta nos preços de combustíveis e inflação. Dar ordens de guerra é tornar mais difícil o acesso das pessoas mais pobres à alimentação, é dar ordens para aumentar a fome, é dar ordens de morte.
b) A caneta que gera caos no clima: À exploração indiscriminada de recursos e reservas naturais a natureza responde com Eventos Extremos cada vez mais frequentes e intensos. Nesses últimos tempos fomos [e ainda estamos sendo] testemunhas de tantas tragédias que ceifaram vidas por causa do excesso de chuva concentrada. Em outros lugares a longa estiagem, o rigoroso e congelante inverno, o intenso calor, terremotos, tsunamis e outros eventos extremos obrigam populações a deixar seus pertences e sua terra e migrar para outras regiões e/ou países. O migrante nada tem. E a fome o acompanha. Dar ordens que agridam ao meio ambiente é dar ordens para aumentar a fome e a morte dos mais vulneráveis.
c) A caneta geradora das migrações: Varias são as decisões que geram as migrações. São exemplos de decisões que geram migrações e, consequentemente a fome: os responsáveis pelas guerras, o fundamentalismo de toda natureza, os autores de violências étnicas e raciais, os responsáveis pelas ações e leis que geram o caos climático, os definidores de políticas de colonização, os definidores de políticas sociais públicas, e outros. Decisões geradoras de fome e de morte.
d) A caneta das decisões econômicas, sociais e políticas: Uma decisão de política econômica que gera inflação é uma decisão que tira o alimento do prato do pobre. Uma decisão que corta benefícios de aposentados (os mais pobres) é uma decisão que faz aumentar a fome no país e no mundo. Uma decisão que limita orçamento para programas sociais (não eleitoreiros) é uma decisão que faz aumentar a fome. Uma decisão de política econômica voltada para os interesses do Mercado Financeiro é uma decisão geradora do empobrecimento, da falta de acesso a uma alimentação adequada, de exclusão e fome para a maioria da população.
Mais de 33 milhões de pessoas passam fome hoje no Brasil. São dados estarrecedores. É uma situação que deve nos obrigar a pensar e rever nossas atitudes, pois um país com a extensão territorial que dispõe, com terras produtivas em todas as regiões do país, e sendo o Brasil “um dos maiores exportadores de alimentos do mundo, mais de 30% da população passou por situações de falta de alimentos entre o fim de 2021 e início de 2022, e quase 60% por algum tipo de insegurança alimentar (quando há falta ou expectativa de falta de comida), quadro que com certeza vem se agravando desde então. Ou seja: enquanto o país vende carne para os Estados Unidos, a população faz fila para comprar osso; enquanto exporta soja para alimentar o rebanho de porcos da China, a população passa fome. Eis um triste retrato do mundo onde há abundância de comida e de famintos” (Luciano Alencar Barros).
Em 2023 a Campanha da Fraternidade irá refletir a questão da fome que atinge mais de 30 milhões de pessoas em nosso país. Diante de tantos sofrimentos e tragédias humanas, o homem de fé não se pergunta “onde estava Deus” que não foi capaz de evitar o sofrimento, o infortúnio e tantos males, mas se pergunta como, com Deus, se faz possível impulsionar forças interiores e se levantar das ruínas… e recomeçar do zero, sem murmurações e lamentos, buscando em seu íntimo a força para retomar o caminho sem amarguras e desalento… com a fé se faz viva a esperança.
José Archângelo Depizzol
07/07/2022
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