Santos Inocentes: Ontem e Sempre.
1 João 1, 5 – 2. 2; Salmo 123; Mateus 2, 13-18
No dia 28 de dezembro é celebrada, em todos os templos católicos do mundo, a solenidade dos “santos inocentes”, para fazer memória a todos os meninos que foram assassinados em Belém, a mando do rei Herodes.
Essa solenidade nos chama a atenção para a situação de tantos inocentes assassinados ao redor do mundo. Segundo a Unicef (https://news.un.org/pt/tags/situacao-mundial-da-infancia) sessenta e nove milhões de crianças vão morrer de causas evitáveis até o ano de 2030. Vidas inocentes poderiam ser poupadas, mas não o são e nem o serão. O mesmo documento da Unicef aponta que se continuar o atual quadro de políticas públicas para a infância e a juventude, 167 milhões menores vão viver na extrema pobreza e 740 milhões de meninas serão forçadas a casar antes de completarem 18 anos.
No Brasil, a face mais trágica, além da situação de extrema pobreza e fome, chama a atenção os altos índices de homicídios de crianças, adolescentes e jovens. Segundo o documento do Unicef, a cada hora um adolescente é assassinado no país. Prevalece entre as vítimas o perfil de menino entre dez e dezenove anos, negro, pobre e morador de favelas e periferias de grandes centros urbanos.
Como se pode ver, a maior parte dessas vítimas é de crianças, adolescentes e jovens. Tanto no passado quanto no presente, crianças e adolescentes, jovens, homens maduros ou idosos – indefesos todos – são vítimas do arbítrio, da maldade e das armas de morte de Herodes.
Herodes continua determinando a morte de tantos inocentes e indefesos quando, hoje, parte (ou melhor, a maior parte) dos recursos da merenda escolar é desviada para o enriquecimento ilícito de empresários e administradores públicos. O golpe da espada desferido contra os inocentes de Belém no tempo de Jesus foi substituído pela fome, ato covarde do desvio de verbas, condenando crianças e adolescentes a um futuro em nada promissor por serem obrigadas a passar pelas escolas sem nada aprender, sabendo-se que a fome interfere negativamente na aprendizagem. O golpe de Herodes continua matando o futuro de crianças e adolescentes, não mais com o agressivo e sangrento golpe da espada, mas com o sutil, envaidecido e pretensamente elegante golpe da caneta.
É o poder das trevas que esconde o poder da Luz, que esconde o poder da transparência, que esconde o poder da verdade, que esconde o poder de Deus. A Luz da presença de Deus gera a comunhão entre irmãos, pois
[…] se dizemos que estamos em comunhão com Deus e, no entanto, andamos em trevas, somos mentirosos e não pomos em prática a Verdade. Mas, se caminhamos na Luz, estamos em comunhão com os outros, e o sangue de Jesus, o Filho de Deus, nos purifica de todo pecado (1 João 1,5-7).
A presença de Jesus, a presença de Deus, a presença da Luz geram a vida e não a morte. A vida é sinal da presença de Deus, “[…] pois Deus amou de tal forma o mundo, que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele acredita não morra, mas tenha a vida eterna” (João 3,13).
O afastamento dos irmãos, o ódio, a indiferença ante o sofrimento de inocentes e indefesos revelam a ausência de Deus. É o império das trevas. É o reino do ódio. É o governo da ganância. É o domínio da corrupção e da morte. O tipo de relacionamento com o irmão revela a presença ou a ausência de Deus, pois “[…] quem afirma que está na Luz, mas odeia o seu irmão, ainda está nas trevas. Quem ama o seu irmão permanece na luz, e nele não há ocasião de tropeço. Ao contrário, quem odeia o seu irmão está nas trevas: caminha nas trevas e não sabe para onde vai, porque as trevas lhe cegaram os olhos” (1 João 2, 9 – 11).
Diante dessa realidade em que vive a maior parte das cidades brasileiras, diante dessa realidade de Herodes empunhando sua caneta e decretando a morte de tantos inocentes, compete-nos, em primeiro lugar, a esperança em Deus e o olhar simultaneamente suplicante e agradecido.
Olhar suplicante de onde emergem lágrimas sofridas de pais e mães que choram seus filhos abatidos por narcotraficantes, por polícias e milícias, por balas perdidas, ou não tão perdidas assim, mas balas intencionalmente perdidas…
Olhar sofrido de onde sobem súplicas doloridas de pais e mães que observam o duro golpe da caneta que ceifa qualquer possibilidade de um futuro melhor para seus filhos.
Olhar esperançoso de onde se elevam – na dignidade do silencio – as súplicas de crianças, de adolescentes, de jovens, de seres humanos maduros e idosos – indefesos todos – ao Deus da Vida, juntando suas súplicas e lágrimas às do salmista, ao dizer:
Para ti eu levanto os meus olhos, para ti que habitas no céu. Como os olhos dos escravos, fixos nas mãos do seu senhor, como os olhos da escrava fixos nas mãos de sua senhora, assim estão os nossos olhos fixos em Javé nosso Deus, até que se compadeça de nós (Salmo 123 [124] 1 – 2).
Tende compaixão de seu povo, Senhor. Que, juntos, possamos levantar nossas vozes agradecidas e, com o salmista, te louvar e agradecer, Senhor, nosso Deus:
“Seja bendito, Javé! Ele não nos entregou como presas para os dentes deles. Fugimos vivos, como pássaro foge da rede do caçador: a rede rompeu-se, e nós escapamos. O nosso auxílio é o nome de Javé, que fez o céu e a terra” (Salmo 124, 6-7).
Tanto no passado quanto no presente vítimas inocentes são imoladas sob o golpe fulminante da espada ou sob o golpe lento e covarde da caneta. Abatidos todos – sem piedade – pela ganância e pela sede de poder. Deus aí não está, pois Deus é amor, é compaixão, é luz. Se Deus aí não está, campeia a morte, a inverdade e as trevas.
Nas trevas da noite José foge para o exílio no Egito. Vai com Maria e o Menino. Vão para a terra que era símbolo de opressão, pois a terra prometida, a terra da liberdade, agora governada por déspotas pervertidos, tornou-se símbolo e lugar das trevas, da opressão, da covardia e da matança de inocentes. O governante iníquo transforma a terra da promessa em terra de opressão, sofrimento e morte. Volte Deus. Venha José com Maria e o Menino Salvador de nosso povo.
Que, nesse período de natal Jesus nasça, cresça e viva em nosso coração e em nossas cidades, para que a espada ceifadora da vida de inocentes se transforme em arados, ferramenta para a produção de alimentos que saciará a vida do nosso povo.
Que a covarde caneta que assina o decreto de morte seja substituída pela caneta que assine o decreto de uma vida nova para a cidade e sua gente, pois “[…] Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância” (João 10,10).
José Archângelo Depizzol
28/12/2021
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