Sob o olhar da Mãe: Conceição Aparecida de Guadalupe
PARTE 1
Já se vão mais de seis décadas. Era menino franzino de aproximadamente cinco anos, filho de pobres agricultores descendentes de imigrantes italianos. Todas as necessidades da família eram extraídas da terra com muita luta e suor, menos sal e querosene (essa utilizada como combustível do candeeiro para iluminação noturna). Quando esses produtos faltavam, mamãe sempre pedia à minha irmã e eu para ir até à “venda” local providenciar o que faltava, “venda” essa onde se tinha aberto o crediário e que todo o débito do ano seria liquidado por ocasião da colheita do café. Era prática comum entre os agricultores da região naquela época.
Todos os moradores se conheciam e eram muito amigos e solidários em caso de alguma dificuldade ou infortúnio. Um adolescente de aproximadamente quatorze anos, menino muito bom e filho de uma família vizinha (e grandes amigos de meus pais), ao se encontrar comigo e com minha irmã, fez uma brincadeira como se ele fosse nos bater. Ele era bem maior e mais forte que nós. Ficamos com medo e corremos muito. E ele gostou da brincadeira que repetia sempre que nos encontrava.
Inicialmente nos ameaçava para ver nossa cara de pavor. E a brincadeira foi evoluindo… as ameaças deram lugar a beliscões, chutes, tapas, socos numa evolução de agressões para manter e/ou aumentar o medo que tínhamos dele. Na verdade tínhamos pavor.
Certo dia ele se excedeu e, num de seus beliscões, feriu a pele de meu pescoço (próximo à nuca) e também de minha irmã. Fez-se um pequeno sangramento e o local ficou bem avermelhado.
Ao chegar a casa, mamãe nem olhou para as compras que fomos fazer, e foi logo perguntando:
– O que foi isso? perguntou observando atentamente o local ferido.
Olhei para minha irmã e ela olhou para mim sem nada dizer. Tínhamos medo de falar, pois o rapaz ameaçava “quebrar nossa cara” caso falássemos para alguém. Mamãe entendeu tudo e nos colocou diante de duas alternativas:
– Vocês é que escolhem: ou falam o que aconteceu ou vão apanhar. Escolham.
Confesso que era mais recomendado apanhar do rapaz. E contamos tudo. Mamãe com serenidade nos deu a incumbência de vigiar e avisá-la quando nosso agressor estivesse de volta. E foi logo avisando: “vocês já sabem: se ele passar e vocês não me avisarem, vocês apanham”. Não preciso nem dizer que nossos olhos sequer piscavam com medo de que o rapaz passasse sem que a avisássemos.
Finalmente, ei-lo que surge ainda longe, tranquilo e chutando pedras da estrada cheia de poeira. Corremos avisar à mãe. E ela disse: “Deixe que ele chegue mais perto”.
Mamãe pegou minha mão e a mão de minha irmã e fomos caminhando, os três, de mãos dadas, até à estrada. Chegamos de surpresa. Sem tempo para qualquer reação do jovem, a não ser tentar passar para o outro lado da estrada sendo imediatamente impedido pelas ordens de mamãe.
Não preciso descrever a cena: uma eloquente bronca, mas com muito respeito e firmeza por parte de minha mãe; e o rapaz, cabisbaixo, tudo ouviu com igual respeito, reconhecimento e acatamento.
Quando a cena parecia encerrar-se, o rapaz pediu desculpas e perguntou se podia ir para casa. Ao que mamãe respondeu:
– Nós vamos até sua casa, e você vai com a gente.
Na casa da mãe do rapaz, depois de um café com broa de milho, as duas mães trocaram um breve diálogo, explicando o motivo da visita. Quando mamãe mostrou as marcas das unhas que ele havia deixado em meu pescoço, sinceramente eu não gostaria de ser o par de orelhas daquele adolescente. A mãe dele era muito parecida com minha mãe. E eram muito amigas. O adolescente, com as orelhas vermelhas, permaneceu no local em silêncio. E nem podia ser diferente para os padrões da época.
Ao nos despedir, o rapaz veio mais uma vez pedir desculpas à minha mãe. Desculpas aceitas, mamãe dirigiu-se ao adolescente e disse:
– Esses meninos tem mãe, disse apontando para mim e para a minha irmã. E quem tem mãe, prosseguiu mamãe, nenhum inimigo encosta o dedo. Inimigo nenhum chega perto, porque a mãe protege, ampara e cuida.
Mais de seis décadas se passaram. Não esqueço as palavras de minha mãe: “Quem tem mãe, nenhum inimigo encosta o dedo, nenhum inimigo chega perto, porque a mãe protege, ampara e cuida”!
Foi nesse momento que ela, mamãe, mulher simples, mulher pobre, mulher de saúde frágil, mulher que não sabia nem ler nem escrever, mas que em sua humildade plantou a mais genuína semente de amor à Maria, Mãe de Jesus.
Hoje, olho o tempo que passou e vejo quantos livramentos, quantas situações de perigo, quantos riscos eu vivi, mas sempre contando com sua maternal proteção.
José Archângelo Depizzol
14/12/2021
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