Aspectos do Legado de Bento XVI.
Desce hoje (05/01/2023) ao túmulo o corpo inerte de Bento XVI. O mundo silencia diante do eloquente silêncio com que Bento XVI bradou ao mundo o seu apaixonado amor a Deus, à Igreja e à sociedade moderna.
Hoje o mundo está menos lúcido. As academias e instituições científicas se prostram, reverentes, diante do intelectual brilhante, do pesquisador metódico e do mestre amável e audacioso que, incansavelmente, buscava a verdade.
Amável e humilde, tímido e audacioso, eloquente e silencioso, destemido e prudente, Bento XVI soube ofertar os valores fundamentais, os princípios basilares e apontar caminhos seguros na insegurança do mundo moderno.
Na manhã do dia 31 de dezembro de 2022, partiu para a eternidade o Papa Emérito Bento XVI, aos 95 anos de idade. Deixa, para a igreja católica e para o mundo moderno, um consistente legado de um homem inteligente, disciplinado, estudioso, homem que soube unir com consistência as relações entre fé e razão: um homem que, como ninguém, amou e se dedicou apaixonadamente a igreja.
Nesse mesmo dia (31/12/2022), em sua oração vespertina o Papa Francisco, refletindo sobre a amabilidade da Família de Nazaré reunida em torno do presépio, comentou: “E por falar em amabilidade, neste momento, o pensamento se volta espontaneamente para o querido Papa emérito Bento XVI, que nos deixou esta manhã. Com comoção recordamos a sua pessoa tão nobre, tão amável. E no coração sentimos tanta gratidão: gratidão a Deus por tê-lo dado à Igreja e ao mundo; gratidão a ele, por todo o bem que fez e, sobretudo, por seu testemunho de fé e oração, especialmente nestes últimos anos de sua vida retirada. Só Deus conhece o valor e a força da sua intercessão, dos seus sacrifícios oferecidos pelo bem da Igreja”.
Um papa e um ser humano que foi capaz de surpreender a todos e em todos os desafios encontrados. Doutor Fernando Altemeyer Júnior assim se referia a Bento XVI depois de 12 meses de pontificado: “Esperava-se pelo recrudescimento do inverno, e temos recebido uma suave brisa de primavera”.
Agradavelmente surpreendente em todos os setores da vida humana, Bento XVI assume o pontificado e onde o “[…] queriam um intelectual inflexível, ele se mostrou místico; onde o queriam um conservador, deu estímulos à ação social da igreja e fez críticas às desigualdades do mundo contemporâneo; quando apostavam num líder eurocêntrico, visita a América Latina”.
Sem a pretensão de uma análise profunda e minuciosa, mas fazendo uma leitura espontânea da vida e do legado de Bento XVI, alguns elementos podem ser destacados e aglutinados em três grandes blocos: o intelectual-teólogo, o Papa e o ser humano Joseph Aloisius Ratzinger, ou para facilitar, simples e eternamente Bento XVI.
- Bento XVI – Intelectual-teólogo.
O fio condutor da produção intelectual de Joseph Ratzinger (e também do Papa Bento XVI) evolui em forma de círculos concêntricos no elemento central da vida e da missão do cristão: a fé em Cristo. Não uma fé ingênua e apressada, servil e impensada, mas uma fé sempre em diálogo com a razão e, portanto, sempre em diálogo com o mundo, com a sociedade, com a ciência, com a cultura e com o diferente.
Não media esforços para que a fé fosse esclarecida, bem fundamentada, fé consistente e fruto de um incansável esforço na busca da verdade que não é um conjunto de conceitos, mas é Deus, é o Emanuel, o Amor que se fez carne.
Esse perfil acadêmico, esse eterno professor, jamais poderia ser deixado de lado quando de sua eleição como Papa Bento XVI. E não há qualquer dúvida de que o seu pontificado foi caracterizado mais por seu magistério do que por ações de governo eclesiástico. “Eu sabia bem que a minha força – se eu tivesse uma – era aquela da apresentação da fé em modo adequado à cultura do nosso tempo”.
Homem de perfil tímido, mas não tinha medo do confronto com ideias e posições contrárias. Buscava a verdade sem medo de revelar as próprias limitações (e as da igreja). Era leal diante das grandes interrogações do mundo, diante do ofuscamento da presença de Deus no horizonte da humanidade contemporânea, diante do futuro da própria igreja.
Por mais dramáticos que fossem os problemas, jamais aceitou adiá-los, disfarçá-los, maquiá-los: problemas precisam ser abordados com rigor e vigor, e resolvê-los em definitivo. Mas, sempre com lealdade, com amabilidade e respeito.
Daí, sua fé profunda e consistente associada à sua aguçada inteligência tornaram-no capaz de buscar e encontrar sempre uma perspectiva de esperança em sua produção intelectual. Três encíclicas corroboram esse perfil. “Deus caritas est”, sobre o Amor que é Deus; “spe salvi”, sobre a esperança; e “caritas in veritate” que trata do desenvolvimento integral dos povos e das pessoas no amor e na verdade. Nessa última encíclica, o papa trata da relação da igreja com o mundo.
Em poucas palavras, Bento XVI deixa um legado intelectual e teológico marcado pela clareza, pela profundidade e pela sensibilidade espiritual.
- O legado de Bento XVI – Papa
Bento XVI assume o pontificado tendo pela frende dois grandes desafios (e dois grandes “pecados”) da igreja:
a) Os escândalos sexuais que proliferaram no clero de todo o mundo;
b) O carreirismo eclesiástico.
Os dois grandes problemas estão relacionados, pois um clero que faz carreira eclesiástica por outras razões que não a da genuína vocação, não terá a mística e a elevação espiritual necessária e presente nos verdadeiros vocacionados.
Bento XVI sempre dirigiu veementes apelos ao clero, e com paternal ternura, à conversão, à penitência e à humildade, propondo uma imagem da Igreja liberta de privilégios materiais e políticos para ser verdadeiramente aberta ao mundo e imagem de Cristo.
Diante dos tantos escândalos sexuais envolvendo o clero, jamais se negou ou prevaricou de sua missão de coibir erros e escândalos dentro da própria igreja. Abusos sexuais e lavagem de dinheiro na estrutura financeira do Vaticano receberam o pulso duro e determinado de Bento XVI. Introduz regras muito rigorosas de combate ao abuso contra menores, pede à Cúria e aos bispos que mudem de mentalidade. Ele chega a dizer que a mais grave perseguição para a Igreja não vem de seus inimigos externos, mas do pecado dentro dela.
Empenhado em sanar problemas internos da igreja, foi vítima do vazamento de documentos retirados de sua escrivaninha e publicados em um livro. Ficou conhecido como Vatileaks. Dentro desses documentos estavam, entre outras, algumas reflexões e alternativas de soluções (provisórias) que o papa estava analisando. Todos esses documentos foram publicados como sendo documento final, gerando enorme desgaste ao então Sumo Pontífice. Nesse período, Bento XVI dá início à Reforma da Administração financeira com rigorosa regulamentação contra a lavagem de dinheiro no Vaticano.
Do ponto de vista de sua atuação como Pastor Universal, Bento XVI mostra-se extremamente misericordioso com o pecador e agudamente rigoroso com o pecado, com o erro e com a inverdade. Inclusive externou publicamente seu perdão ao seu secretário que subtraiu os documentos provisórios e publicados posteriormente (Vatileaks).
Assumiu o pontificado marcado, inicialmente, por caricaturas do “panzerkardinal”, ou seja, o cardeal-tanque, caricatura atribuída ao Cardeal Ratzinger quando dirigiu o Dicastério para a Doutrina da Fé (antigo santo ofício), em que o cardeal era extremamente rigoroso na análise das obras teológicas. Não faltaram associações à ação de Ratzinger com os famosos interrogatórios promovidos pela Inquisição.
Essa maldosa associação sempre teve o objetivo de quebrar o controle da igreja sobre o que os teólogos falam em seu nome e como seu magistério.
Surpreendente como sempre, Bento XVI inicia seu pontificado lançando a Encíclica que será o fio condutor de seu pastoreio universal: Deus é amor.
Encíclica sobre a alegria de ser cristão, de ser Filho de Deus e de ser amado por Deus. O “Panzerkardinal” mostra sua face meiga, humana e terna. Surpreendente, como sempre.
Assim, responde com meiguice e afeto aos ataques, aos rancores e, até mesmo, o ódio de seus adversários. Em todo seu pontificado, Bento XVI proclamou a alegria de ser cristão que se fundamenta não numa ideia, mas num encontro pessoal e amoroso com uma Pessoa, a Pessoa que é Deus. E Deus que é Amor.
Mesmo sendo um homem proveniente da academia e acostumado ao rigor científico, da sacada da Basílica de São Pedro, Bento XVI se apresenta como “um humilde trabalhador na vinha do Senhor”. Alheio a qualquer protagonismo, ele diz que não tem “programa de governo para a igreja”, mas quer “ouvir, com toda a Igreja, a palavra e a vontade do Senhor”.
Esse legado de humildade será fortalecido no ato de sua renúncia ao pontificado.
- Bento XVI – O legado de um Ser humano
O primeiro legado que quero destacar é exatamente o legado de seus últimos anos, últimos tempos, últimos dias de vida. Um homem brilhante, inteligente e bem sucedido sabe ler, aceitar e viver, na serenidade dos justos, o eloquente testemunho de como viver na fé a fragilidade crescente da velhice por muitos anos até a morte.
Acostumado a ser durante a vida, Bento XVI brindou o mundo com o testemunho de um homem que, na fé, soube aprender a “deixar de ser”. As limitações da idade e da doença fizeram-no, pouco a pouco, a “não mais ser”, a “deixar de ser”. Era teólogo? Já não é mais. Era pastor? Já não mais o é. Era papa? Não é mais. Já não é mais, e é impotente, totalmente dependente. No leito de dor e de morte sentiu-se como Jesus, a quem tanto amou: impotente, frágil, sozinho.
O fato de haver renunciado ao papado a tempo oportuno lhe deu a permissão – e a nós com ele – de percorrer este caminho com grande serenidade.
Incapaz de falar, talvez restasse ainda um curto tempo para dois Flashes Back de um breve filme de sua vida:
a) A viagem a Auschwitz e Regensburg e suas poucas palavras naquele lugar: “Em um lugar como este, as palavras falham, só um silêncio perplexo pode permanecer – um silêncio que é um grito interior a Deus: Por que pudeste tolerar tudo isso?”
b) A Renúncia pelo amor à Igreja e suas palavras dirigidas aos cardeais:
“Queridos irmãos e irmãs, como sabem, decidi… (aplausos)… Obrigado pela simpatia… (aplausos)… Decidi renunciar ao ministério que o Senhor me confiou em 19 de abril de 2005. Fiz isso em plena liberdade para o bem da Igreja, depois de ter rezado por muito tempo e de ter examinado diante de Deus a minha consciência, bem consciente da gravidade desse ato, mas também consciente de já não estar em condições de prosseguir no ministério petrino com aquela força ele exige.” (Audiência Geral de 13 de fevereiro de 2013).
Amou a Igreja como ninguém. E apaixonado, conseguiu balbuciar suas últimas palavras: “Jesus, eu te amo”.
E nesse amor… partiu sereno para o abraço de Deus a quem sempre amou e procurou servir.
Gratidão Bento XVI.
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José Archângelo Depizzol
05/01/2023
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