Passam-se os dias. O tempo voa. Ontem era setembro e era amarelo. Hoje já é outubro. E rosa! Passa o tempo, mudam-se as cores, mas permanece a dor! E como dói! Em muitos casos essa dor só cresce! Dor insuportável! Irresistível! Dor que pode ser letal!
Onde está a dor? Como combater a dor se não sabemos onde dói e nem em quem dói?
Tanto a dor localizada e tangível abordada no outubro rosa (prevenção ao câncer de mama) quanto a dor invisível e, tantas vezes surpreendente e indefinida, discutida no setembro amarelo (prevenção ao suicídio) precisam do olhar atento, terno e acolhedor do grupo social a que pertencem seus portadores.
Os números são alarmantes. A Associação Brasileira de Psiquiatria estima que 17% dos brasileiros já pensaram em suicídio. Isso representa aproximadamente 34 milhões de brasileiros.
Esses números assustam e revelam a falência de uma proposta coletiva de vida que faz pessoas sofrerem tanto, ao ponto de pensarem na renúncia suprema, a renúncia ao seu projeto de vida, à renúncia à própria vida.
O suicídio não é só a falência de um projeto pessoal de vida. Não é só falência da pessoa. É, sobretudo, a falência do modelo social, econômico, político, cultural e filosófico adotado numa determinada sociedade, numa determinada cultura. E o suicídio é, hoje, a quarta causa de morte de jovens entre 15 e 29 anos de idade no Brasil.
Há outro dado muito importante a se dizer: segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) com informação e ajuda é possível prevenir, remediar e evitar até 90% dos casos de intenções suicidas. Portanto, não se pode ficar indiferente e/ou dar respostas apressadas, respostas carregadas de julgamentos, de condenações morais e religiosas, carregadas de preconceitos que só fazem aumentar o sofrimento da vítima (caso sobreviva) e de seus familiares.
Essa informação nos convoca a estarmos atentos, vigilantes e proativos diante das dores invisíveis que afetam nossos semelhantes e que, infelizmente, muitos não suportam e chegam ao ponto da renúncia da própria vida. É dor muito intensa que não pode ser subestimada.
Considerando que somos seres sociais, temos que admitir que seja a violência contra os outros (agressão e/ou destruição do outro), ou o suicídio (agressão/destruição de si mesmo) revelam a falência do Modus Vivendi estabelecido pelo sistema social, econômico, político, filosófico e moral em que estamos inseridos. Tanto o homicídio quanto o suicídio revelam que as engrenagens de nosso sistema social não estão funcionando de forma adequada para atender às necessidades fundamentais dos indivíduos.
É neste contexto que podemos inserir a primeira e apressada recomendação: é extremamente importante construir (ou reconstruir) e fortalecer laços sociais capazes de acolher as pessoas como elas são, acolher com empatia e ternura, sem julgamentos morais, sem preconceitos ou ares de superioridade ou indiferença. A sociedade moderna ao mesmo tempo em que dissolveu os antigos laços sociais das conversas familiares, do estar juntos, do compartilhamento da vida, do sentimento de pertença familiar, não conseguiu estabelecer novos e significativos laços sociais para os indivíduos.
A qualidade do vínculo e dos laços sociais que a pessoa estabelece com seus pares e contemporâneos pode determinar uma prática (e as taxas) de suicídio. Assim, se os grupos mais significativos para o indivíduo não assumem formas equilibradas, positivas e felizes, tais grupos podem produzir sofrimentos intensos e gerar subjetividades frágeis e incapazes de lidar com a dor e com o sofrimento. O contrário também é verdadeiro: grupos bem constituídos, acolhedores, empáticos e saudáveis podem contribuir para que ideações suicidas sejam revogadas.
A ação social (em família, grupos de amigos, escolas, igrejas, ambiente de trabalho e outros) que procura trabalhar preventivamente para que suicídios sejam evitados, precisa endereçar ações em dois sentidos:
Primeiro: fortalecendo e potencializando laços sociais positivos (família, amigos, igrejas, ambiente de trabalho, etc.), pois somos seres sociais, e nossa subjetividade é constituída nas teias dessas interações sociais. Por isso, é importante que o grupo mantenha um equilíbrio entre ser acolhedor, amigável, alegre, positivo e, ao mesmo tempo, exigente no crescimento de cada indivíduo dentro desse grupo. É preciso manter o equilíbrio para não ser totalmente permissivo ou altamente opressor, cobrador e tirânico. É preciso manter o equilíbrio entre ser afável, terno, carinhoso e acolhedor e, ao mesmo tempo, tirar o indivíduo de sua zona de conforto para que ele cresça, se fortaleça e enfrente suas próprias dores, sofrimentos e problemas. Que esses laços não sejam nem frouxos demais e, nem tampouco, tirânicos e demasiadamente opressivos.
Segundo: fortalecendo e potencializando traços específicos da subjetividade dos indivíduos tornando-os capazes de enfrentar seus dramas, problemas e dores sem o risco do colapso de seu projeto pessoal de vida.
Nesta segunda linha de atuação há que se prestar muita atenção em alguns pontos:
a) Pessoas que atribuem pouco ou nenhum valor pessoal diante do grande valor que atribuem ao grupo ao qual pertencem.
Imaginemos o caso de um(a) jovem nascido(a) numa família tradicional cristã. Sempre foi referência de caráter e de bons costumes. Sempre foi assíduo e membro ativo em sua igreja. Toda a comunidade tem grande expectativa em vê-lo(a) adulto(a) exemplar e continuador dos valores e costumes de seu grupo religioso.
Imaginemos esse(a) jovem crescendo e percebendo sua condição de identidade sexual contrária à moral aceita e praticada em seu grupo religioso. Estabelece-se forte conflito entre os componentes de sua identidade sexual e a moral do grupo ao qual pertence e que tanto valoriza. É o tipo de pessoa que supervaloriza a opinião dos outros e do seu grupo e, simultaneamente, desvaloriza ou menospreza suas necessidades, opiniões e convicções, ou seja, o que importa é o grupo.
Estamos diante de um caso perigoso de ideação suicida. Durkheim chamou esse tipo de “suicídio altruísta”, pois ocorre sempre que a vida do sujeito vale muito pouco diante do valor que ele atribui ao grupo, ou seja, sempre o grupo (a coletividade) será mais importante que qualquer outra coisa e, para não prejudicar e encarar o grupo, é mais fácil abrir mão da própria existência.
b) Pessoas que atribuem pouco ou nenhum valor ao grupo ao qual pertencem e levam uma vida centrada em si mesmo.
É o oposto do anterior. Nesse caso, o indivíduo não estabelece nenhum vínculo com seus pares e grupos. Centra sua vida em seus interesses, seus desejos e suas dores. Durkheim chamou esse tipo de suicídio egoísta. O indivíduo não olha o sofrimento que seu ato poderá ocasionar para seus familiares, amigos, pares de idade e de comportamento. O seu único desejo é sair de uma situação de dor, mesmo com a renúncia da própria existência.
c) Falar sobre o assunto é mais recomendável o silêncio.
Muito se questionou se a exposição do assunto do suicídio não seria estímulo a essa prática em pessoas que jamais teriam pensado nessa atitude.
Desde o final do século XVIII a imprensa mundial procurou evitar tocar nesse assunto considerando o fenômeno conhecido como o “efeito Werther” em alusão à onda de suicídios supostamente influenciados pelo personagem suicida do livro de Goethe “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, publicado em 1774.
Na verdade, ninguém se suicida por imitação. O máximo que pode ocorrer é a aceleração do processo em pessoas que já estavam propensas e dispostas a praticar o suicídio. Vamos considerar alguns pontos nessa questão de abordar ou não o tema do suicídio:
- Não há como controlar e blindar o jovem do acesso às mais diversas abordagens sobre o tema.
Sempre teremos produções de impacto seja na literatura (como é o caso do livro “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, de Goethe), seja no cinema ou séries (como é o caso de “13 Reasons Why”) como também em produções inomináveis como é o caso do pretenso jogo “Baleia Azul”. Pelos exemplos citados, fica claro que o indivíduo vai ter contato com conteúdos e abordagens sobre o suicídio. Então, o melhor que podemos fazer é abordar o assunto com responsabilidade, preparo e, acima de tudo, com o desejo ardente de ajudar ao potencial suicida.
- Jamais imprimir cunho moralizante, proselitista religioso, preconceituoso e condenatório na abordagem do tema do suicídio.
Expressões como “isso é falta de Deus”, “coloque Deus em sua vida”, ou “venha para a nossa igreja” e outras similares, devem ser evitadas e repudiadas. Jamais a abordagem pode dar margem à ideia de criminalização, pecado, desvio moral, loucura, ou outro sentimento similar.
- A abordagem ao tema precisa imprimir cunho altamente positivo, integrativo e acolhedor.
A proposta mais eficaz na prevenção da prática de suicídio é a criação e/ou o fortalecimento dos vínculos dos indivíduos com o seu grupo. A qualidade desses vínculos poderá determinar o sucesso na prevenção ao suicídio. Para isso os indivíduos precisam sentir-se acolhidos, valorizados, amados e reconhecidos em seus valores particulares. O vínculo é o elemento central na constituição da subjetividade saudável e capaz de enfrentar seus problemas, dramas e dores.
- O problema não é “falar ou não falar” sobre o suicídio, pois se deve falar e abordar o tema em todas as formas de grupos em que os indivíduos mantém vínculos, mas é preciso ter cuidado ao “como falar”.
Assim, é muito importante que sejam evitados debates e reflexões APENAS quando um fato ganha repercussão na mídia. Muitos canais (em especial de TV Aberta) fazem da espetacularização ou glamourização da violência (incluindo o suicídio) o menu principal de sua audiência. Essa espetacularização da violência/suicídio é sempre desrespeitosa com relação à memória da vítima (sempre é bom lembrar que o suicida é uma pessoa que foi submetida a intenso sofrimento) e de seus familiares.
O debate e as reflexões feitas apenas nessas ocasiões levam à ideia de que o suicídio pode transformar o indivíduo anônimo em celebridade. A abordagem ao tema deve ser constante, inclusive nesses momentos em que a mídia esteja explorando algum caso em específico.
Por outro lado, tem muitos setores da mídia que abordam o tema não como espetáculo bizarro, mas como conteúdo significativo e importante nos dias atuais. Nesse caso, recomenda-se a utilização desses meios disponíveis na mídia (e que abordam o assunto de maneira séria) como material de estudos, debates e reflexões.
- Mostrar amor e falar de Deus.
Muitas pessoas e organizações (dotadas de extrema boa vontade e altruísmo) dedicam trabalhos com sobreviventes de tentativa de suicídio. É muito comum ver pessoas que falam abertamente que sua estratégia é “mostrar amor” ou, ainda, “falar de Deus”.
Claro que são duas ações de suma importância, mas é preciso ter atenção e cuidado. O amor só tem sentido quando o outro aceita ser amado, quando o outro deseja o amor. O mesmo vale também para o “falar de Deus”. Ninguém discute a importância de Deus e de se falar de Deus. Mas, a eficácia só ocorre quando o indivíduo deseja ouvir “falar de Deus”. Amor e oração são muito importantes, mas no caso do sobrevivente suicida é preciso que ele aspire, queira e deseje fazer as orações e ser amado pelas pessoas que o abordam naquele momento.
- Falar sobre o ocorrido com sobreviventes.
Todos nós sabemos que não é fácil, mas uma das formas mais eficazes de ajudar ao sobrevivente de uma tentativa de suicídio é conversar sobre o ocorrido. Não é fácil e é necessário entender o tempo certo para abordar o assunto, pois cada indivíduo reage de maneira diferente a uma experiência forte e traumática como essa. É preciso entender o tempo certo em que o sobrevivente da tentativa de suicídio consiga e queira falar.
Também os familiares e amigos mais próximos ainda estão abalados, temerosos e, em certos casos, até raivosos com o ocorrido. Além do tempo da vítima se recompor para conseguir falar sobre as razões que o levaram à tentativa de suicídio, também os familiares precisam analisar o melhor momento para falar, evitando-se ações impensadas e movidas pela exaltação de ânimos.
A forma mais recomendável para a superação da dor em sobreviventes suicidas é a expressão verbal do indivíduo. Mais do que falar para o suicida, se faz necessário proporcionar condições para que ele verbalize seus sentimentos e sofrimentos. Mais do que buscar palavras a dizer é importante a atitude de escuta atenta, acolhedora, empática e amável de quem se propõe a ajudar.
7. Redobrada atenção aos casos que envolvam adolescentes.
Não gosto e nem se deve generalizar, mas é fato que a adolescência se constitui num momento crítico de “morte em vida”. Morre a criança que sempre foi amada por seus pais. E o novo ser ainda não está constituído, aprovado e aceito. Seu corpo muda, seu olhar muda com também mudam os olhares de todos sobre o seu corpo. Mudam suas relações com os pais, com os amigos, com o mundo e consigo mesmo. Sua visão de futuro é muito frágil e seus pontos de segurança carecem de fundamentos.
Isso dá o tom, a textura e a intensidade das crises enfrentadas por adolescentes. Os pontos de apoio da subjetividade do indivíduo adolescente apresentam-se tão tênues e frágeis que qualquer crise pode representar “o fim do mundo”, pode representar o colapso do ideário adolescente. Ideário frágil e carente da aprovação dos adultos e de seus pares.
Essa fragilidade leva à potencialização máxima e, às vezes, radical de atitudes adolescentes. “Mas, só por isso ele tentou o suicídio”? Esse é o tipo de pergunta ou comentário que deve ser evitado. A situação deve ser trabalhada (e remediada) a partir do olhar do adolescente e não do olhar do adulto. Adolescentes experimentam profundo desamparo pelo mundo infantil perdido e pelo mundo do futuro adulto ainda sem a aprovação social que o referende.
8. Atenção e cuidados dos pais.
Geralmente os pais solicitam e querem saber quais são os sinais que um potencial suicida emite antes de efetivar a própria morte. Tais sinais podem ser enganosos e cair em clichês e estereótipos tais como o vestir-se de preto, andar desarrumado (roupas e cabelos), falar e cultuar a morte e seus personagens etc. Nem sempre esses “sinais” indicam ideações suicidas. Pode ser um estilo, uma fase, um momento da vida adolescente.
Mais importante que procurar sinais estereotipados é o acompanhamento contínuo dos pais na vida do filho. Acompanhá-lo não tão de perto a ponto de não sufocá-lo e invadir sua privacidade, e nem tão distante a ponto de ser confundido como distanciamento, indiferença e menosprezo. Os pais precisam buscar a justa medida e não confundir “cuidado” com “controle”. O adolescente precisa ter a liberdade e a ousadia de empreender os necessários ensaios fora de casa, longe do controle dos pais, mas sempre sabendo que poderá contar com os cuidados de pai e mãe nos arranhões e feridas que sempre sofremos na jornada dessa vida.
Também é muito salutar aos pais buscar orientações com um profissional para orientá-los em suas dúvidas sobre possíveis sentimentos depressivos de seus filhos e/ou ideações suicidas.
Não concluindo, pois o assunto é muito vasto e será retomado mais adiante, é importante fazer com que a pessoa com ideações suicidas se sinta atentamente ouvida, respeitada e que, ao falar, essa pessoa consiga reorganizar seus pensamentos, sentimentos e emoções e, assim, se sinta aliviada de suas dores e sofrimentos. Que ela se sinta fortalecida a tomar novo ânimo de vida até mesmo, se for necessário, com a ajuda de um profissional da área.
No peito há um coração ferido na iminência de um colapso existencial. No peito há um câncer de mama, que pode ser letal. Sejam Setembro Amarelo ou Outubro Rosa sinais de alerta, de cuidado e acolhida amorosa de semelhantes nossos com dores agudas e intensas nos seus corpos e em suas almas.
José Archângelo Depizzol
12/10/2022
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